Perspectivas de jovens porto-segurenses sobre turismo e cibercultura
Pra mostrar que já estamos na era de lutar pela nossa razão, combater a pobreza e a miséria do mundo vermelho tição. O vulcão que é filho da terra e a terra tem seu valor, quando a tristeza se afaga derrama larva de amor. Saia de baixo meu bem lá vem o vulcão da liberdade. Encontrar os limites na busca, cara a cara e também olho a olho impondo a bandeira do sim tendo a certeza e a coragem do povo. (Matéria, Tonho. Vulcão da liberdade. In: Daniela Mercury, 1998, disco Elétrica)
Um estudo sobre a dinâmica de um local na era da informação deve incluir o pensamento dos residentes sobre o lugar e sobre as atuais transformações mundiais, proporcionadas pela cibercultura. Afinal, a compreensão sobre as concepções populares constitui-se como fator imprescindível para que seja sugerida a edificação de uma cidade virtual, voltada realmente para a ampliação de ações com bases democráticas. Assim, entender razões, anseios populares e seus limites sociais e econômicos pode ser um caminho para conduzir os próprios cidadãos a edificarem realizações mais humanas, utilizando das tecnologias digitais, capazes de combater a pobreza, a miséria e demais perplexidades que dificultam a formação de uma sociedade mais justa e mais democrática.
Partindo dessa perspectiva, a pesquisa realizada, em novembro d 2004, com estudantes universitários e do terceiro ano do ensino médio do município de Porto Seguro, indica que as transformações propostas pela cibercultura estava manifesta também no pensamento popular, caracterizando o espírito de tempo. A pesquisa é realizada com estudantes, considerando-se que estes são mais atentos às transformações mundiais e às inovações tecnológicas, além de estarem em fase preparatória para o mercado de trabalho, o que leva a inferir que as perspectivas de vida estão aflorando.
Para a delimitação da amostragem escolheu-se uma escola pública da cidade de Porto Seguro, uma do distrito de Trancoso e uma escola pública em Arraial d’Ajuda (representando as classes baixa e média baixa). Também se escolheu uma entre as duas das escolas particulares localizadas na cidade sede (únicas do município) e uma das duas faculdades particulares próximas ao município como representantes das classes média alta e alta. Na pesquisa realizada na faculdade, foram abordados apenas estudantes residentes em Porto Seguro. Em cada uma dessas instituições foram aplicados questionários a dez alunos, somando um total de cinqüenta questionários aplicados.
Com essa pesquisa, objetivou-se entender um pouco da percepção dos nativos sobre o município de Porto Seguro, as suas concepções sobre a atividade turística bem como a freqüência de uso da internet e as expectativas de como esse meio pode contribuir para a melhoria da vida no município. O questionário contou por onze questões subjetivas, elaboradas com base nas teorias utilizadas neste trabalho e nas observações realizadas nas etapas anteriores desta pesquisa.
Na primeira questão, pediu-se a sinalização de três aspectos que caracterizam o município. Os estudantes da escola de Trancoso apontaram que as praias, a simpatia popular, os centros históricos, o turismo, a união da comunidade, as possibilidades de emprego, o carnaval e a precária infra-estrutura urbana, são aspectos que caracterizam o município de Porto Seguro. Além desses, os estudantes representantes do Arraial d’Ajuda apontaram que o município corresponde a uma das principais cidades turísticas do mundo por possuir um belo litoral e ser a terra ‘Mater do Brasil’.
Os estudantes da amostragem de escolas públicas da cidade de Porto Seguro acrescentaram aos aspectos já identificados pelos estudantes da amostragem nas escolas dos distritos, a musicalidade do local e as barracas do circuito Porto Night como ícones do município. Os alunos da rede privada identificaram, além da natureza e riqueza histórica, a sujeira, o intenso consumo de drogas e a prostituição. Por fim, os estudantes universitários da amostragem, além de ratificarem os aspectos citados pelos alunos do nível médio, apontaram a facilidade de acesso ao local, a vida noturna ativa e desestruturada bem como a impunidade como características gerais do município.
Por uma análise dessas respostas, pode-se inferir que o imaginário da carta de Caminha e o mito do descobrimento se fazem presentes junto à concepção da população sobre o próprio município. Observa-se, contudo, uma leitura mais crítica sobre o cotidiano quando os estudantes apontam perplexidades sociais como impunidade, consumo de drogas, prostituição e precária infra-estrutura urbana junto à caracterização do local. Constata-se, entretanto, que o turismo constitui-se como a atividade econômica na qual os nativos depositam suas expectativas de vida, deixando para trás outras potencialidades como a agricultura, a pecuária e a própria industrialização, fato que pode ser decorrente (e/ou explicar) do enorme número de empresas turísticas e a carência de empreendimentos voltados para a realização de outras atividades econômicas.
Contudo, como o turismo é atualmente a principal atividade econômica do local, pediu-se para que fossem identificados três aspectos positivos e três aspectos negativos provocados pelo setor no município. De modo geral, foram apontados como aspectos positivos o aumento dos vínculos empregatícios, desenvolvimento tecnológico, encontro entre etnias e as trocas culturais, reconhecimento mundial do município, além das possibilidades de aumento da renda familiar e melhoria de vida. Os aspectos negativos apontados foram poluição, urbanização descontrolada, falta de capacitação dos moradores locais, prostituição, pesca predatória, violência, assaltos, aumento do consumo drogas, comércio ilegal, divisão social aparente e também a falta de respeito à cultura local por parte dos turistas. Ainda foi identificado, como aspecto negativo, o aumenta dos riscos de contaminação da população com doenças venéreas e a destruição do patrimônio arquitetônico e natural.
Em muitas respostas, identificou-se como aspecto negativo o sentimento de liberdade do turista, apontando que este o permite agir sem pudores e sem respeito à população, praticando atos como a utilização de drogas em espaços públicos, práticas de vandalismo, não valorização das expressões locais e a concepção de que as mulheres nativas todas estão disponíveis ao sexo. Considerando o imaginário sobre Porto Seguro e a dinâmica dos principais centros emissivos desse destino (São Paulo, Brasília, Minas Gerais), pode-se apontar que esse aspecto contextualiza a ideia de flanerie capitalista temporária e comunitária, desenvolvida no capítulo anterior, ratificando que o turista busca a evasão e a fuga do seu cotidiano para enquadrar-se em uma ambiência, na qual ele se sente livre para executar ações que provavelmente não podem ser realizadas em seu local de residência.
Evidencia-se, porém, que a identificação de aspectos negativos junto ao desenvolvimento da atividade turística, vem a exigir um processo constante de organização urbana, no qual se devem buscar elementos e dispositivos voltados para amenizar problemáticas sociais que também contextualizam o local. Nesse sentido, é que se pensa a tecnologia como um fator capaz de propor mudanças sociais benéficas à população, evidenciando o que se considerou como fenômeno de tendência nos destinos turísticos. Contudo, reafirmando a percepção de fenômeno de fato, junto aos centros receptivos, compreende-se que as expressões tecnocráticas e a competitividade em torno da atividade turística, típica de qualquer ação capitalista, desencadeiam tanto aspectos positivos quanto negativos em qualquer centro onde tecnologias (mecânicas, eletrônicas ou cibernéticas) são utilizadas. Partindo dessa perspectiva, pediu-se, no terceiro ponto do questionário, para os estudantes da amostragem apontarem três aspectos positivos e três negativos provocados pela utilização de aparatos tecnológicos no cotidiano do município.
Velocidade nas informações, agilização das tarefas, desenvolvimento urbano, redução das distâncias, conexão com o mundo, combate às doenças, aumento da produtividade, a disponibilização de caixas bancários de auto-atendimento, novas possibilidades de trabalho, de educação, de interação social e de lazer foram, de modo geral, aspectos identificados como positivos. Deve-se destacar que, na maioria das respostas, foram evidenciadas as atuais possibilidades de aquisição de informação e de conhecimento bem como a potencialidade dos meios de transportes, o que sinaliza uma acepção coerente com essa atual ‘era da informação’.
A observação acima pode ser ratificada a partir da quarta questão do questionário que pedia a enumeração em ordem de importância de três aparatos tecnológicos capazes de contribuir para a melhoria de vida. Os aparelhos de comunicação e de transportes foram os mais citados. Em 46 (quarenta e seis) questionários foram citados aparelhos de comunicação em especial o computador, o celular e a televisão como os aparatos que mais contribuem para a melhoria da vida. Fax, telefone fixo e rádio, também foram enunciados. Os meios de transportes apareceram em 20 (vinte) questionários, destacando-se avião e automóveis particulares. Outros aparatos como eletrodomésticos, aparelhos utilizados pela medicina, caixas de auto-atendimento, maquinário utilizado no trabalho de infra-estrutura urbana e aparelhos identificadores de armas e de drogas também foram enumerados como importantes para a melhoria da vida.
As duas questões anteriores também foram necessárias para que se pudesse chegar sutilmente ao objetivo principal do questionário que é identificar a relação da população com o computador, destacando a utilização da internet. Assim perguntou-se, na quinta questão, como o computador poderia contribuir para a melhoria de vida. Pesquisas, interação, informações, diversão, possibilidades de trabalhar na própria residência e agilização do trabalho em empresas, movimentação econômica através do e-comece, produção educacional, novas possibilidades de aquisição de emprego, avanços na medicina e a conexão do homem como o mundo foram ações sugeridas pela utilização do computador capazes de potencializar e dinamizar as ações, fomentando benefícios para os cidadãos conectados.
Também foi indicado, como uma possível melhoria da vida a partir do computador, o processo de desenvolvimento social a partir da inclusão digital bem como o desenvolvimento de comunidades virtuais que poderiam promover mais qualidade na educação popular. Contudo, embora se tenha identificado um conhecimento sobre a potencialidade do computador, contradizendo o depoimento do presidente do Conselho Regional de Turismo da Costa do Descobrimento – CRTCD – , evidenciado no tópico final do capítulo anterior, pode-se inferir que não há uma prática mais contundente da maioria dos moradores local com relação à internet pela falta de acesso ao meio. Afinal, dos trinta estudantes da escola pública que responderam ao questionário, apenas 10 (dez) possuem computador em casa e desses apenas três têm conexão com esse média. Todos os estudantes da escola particular que compuseram a amostragem e sete dos dez estudantes universitários possuem o parelho em casa, conectados à rede.
Esses números podem indicar não apenas um processo de exclusão digital, mas também podem evidenciar a proliferação de um sistema social injusto e polarizador, no qual perpetua-se a histórica condição social em que os ricos cada vez mais se beneficiam com as inovações tecnológicas ao passo que os menos favorecidos economicamente permanecem à margem desses avanços. Esse processo pode suscitar também a falta de políticas voltadas para inserção da população no mercado de trabalho turístico. Portanto, diferente do que apontou o representante do CRTCD, a falta de preparo da população local para atuar com a internet pode não ser justificada pela falta de um pensamento de modernidade, mas sim pela falta de oportunidades de especialização e de capacitação profissional.
Essa inferência pode ser também constatada pelo total de programas conhecidos e utilizados pelos estudantes que compunham a amostragem, bem como pela freqüência de acesso à internet e pelo tipo de site utilizado. Os programas mais conhecidos pelos alunos da rede pública, que participaram da pesquisa, são word, excel, windows e internet. Estes acessam a rede no máximo duas vezes por semana, na escola ou em cybercafes, o que aponta para um tempo limitado de conexão. Geralmente freqüentam sites de busca com o propósito de efetuarem pesquisas para trabalhos escolares, além de buscarem também por diversão.
Os alunos da rede particular (ensino médio) que responderam ao questionário informaram conhecer e utilizar os programas word, excel, windows, corel draw, e power point, além de internet. Estes acessam a rede, no mínimo, duas vezes por semana, na própria residência. Esse detalhe conduz à inferência de que o tempo de conexão não segue uma delimitação institucional (como o acesso na escola), nem financeira (como o acesso no cybercafe, onde um minuto de conexão é bastante caro, considerando o valor do salário mínimo). Os sites mais frequentados por esses alunos da rede privada são os de busca para pesquisas, os de diversão, de jornalismo, de interação e de e-comerce. Utilizam as informações geralmente para a confecção de trabalhos escolares, também efetuam relações a partir das salas de bate-papo.
Por fim, os alunos universitários da amostragem utilizam mais dos programas de processamento de texto e internet, cujo acesso dá-se várias vezes por semana em casa, no trabalho e/ou na faculdade. Frequentam sites de jornalismo, de buscas, de interação e de e-comerce. Geralmente utilizam a rede para pesquisas da faculdade e para a agilização no trabalho. Nenhum dos estudantes que participaram da pesquisa, informaram conhecer linguagem de construção de sites.
Considerando com (Ortiz, 1994, p.14) que “as idéias de sociedade da informática ou de aldeia global sublinham a importância da tecnologia moderna na vida dos homens”, pode-se inferir, a partir das informações coletadas, que vem se manifestando, no município, um pensamento de mundialização. Para o mesmo autor, esse pensamento corresponde ao elemento fundamental para que sejam promovidas mudanças nas sociedades, no sentido de enquadrá-las nos modos contemporâneos de produção tecnológica. Pode-se também apontar que esse pensamento contribui para a concepção de Porto Seguro como cidade global da Costa do Descobrimento, possuindo uma originalidade, uma vida própria e, ao mesmo tempo, uma conexão com o mundo.
Contudo, também se pode ratificar a ideia de que o município está longe de representar uma sociedade modelo de democracia, contradizendo o que pode ser entendido nas entrelinhas do imaginário propagando sobre o local, inferindo-se a alarmante discrepância social, como observado na amostragem; na medida em que dos 30 (trinta) alunos representantes das escolas públicas, apenas 10 (dez) possuem computador. Ao passo que dos 20 (vinte) da rede privada - ensino médio e universitário – dezessete o detêm.
Portanto, pode-se identificar a existência de vários grupos culturais ou de vários subsistemas sociais componentes do município de Porto Seguro, que, mesmo apresentando concepções de mundo semelhantes, podem ter interesses e necessidades divergentes. Essa constatação, por sua vez, vem a tornar ainda mais complexa a edificação de uma cidade virtual, que venha a contribuir para o desenvolvimento socioeconômico desses vários grupos que compõem a ambiência do local. As várias identidades culturais, que estão por trás desse referencial econômico e tecnológico utilizado, sugerem um estudo detalhado sobre os valores, estilos de vida e as formas de pensar dos grupos que compõem a dinâmica do local. Por esse estudo, então, pode-se buscar a virtualização do local, enquanto proposta de democracia.
O que se apresenta, então, já no final desse trabalho é mais um grande problema que merece maior atenção, não se esgotando aqui sua discussão. A cidade turística, com base nos estudos realizados no capítulo anterior, comporta-se como um espaço coletivo, onde se observam interações humanas sinérgicas. Por outro lado, foram evidenciados, por uma amostragem da população local, aspectos negativos que merecem determinada atenção no sentido de se amenizarem perplexidades sociais, que resultam dessas interações turísticas, comuns em centros capitalistas. A esse fato, deve-se associar interesses das várias comunidades de turistas que desfrutam do local, dos grandes e dos pequenos empresários além dos interesses públicos e, principalmente, dos interesses dos moradores locais, considerando as várias identidades culturais.
Por uma analogia à compreensão de Ortiz (1994) sobre o paradigma do world system, pode-se dizer que a dinâmica turística e a utilização da internet fazem avançar o pensamento mas não deixam de apresentar problemáticas, que, se ignoradas podem levar os sistemas sociais a grandes impasses. Assim, a grande competitividade entre empresários, as diferenças sociais evidentes, o desrespeito à população local por turistas, o crescimento urbano descontrolado, a utilização da internet para a propagação de um imaginário, que, muitas vezes, deturpa o senso do local bem como a utilização desse espaço para promover a prostituição junto à atividade são, entre outros, impasses que exigem medidas urgentes. É preciso que o turismo, atividade econômica mais lucrativa e fonte de esperança para a juventude nativa, não termine como mais uma ações de exploração desenfreada, tal qual como ocorreu após o nascimento do Brasil, como o pau-brasil, com o açúcar...
Nesse sentido, a projeção do município no ciberespaço deve partir do aspecto comum entre os vários grupos que fomentam a sua dinâmica, de modo que todos esses segmentos possam se identificar com essa representação virtual, e, então, dinamizá-la. Através desse trabalho, pode-se evidenciar que o ponto de intersecção entre esses segmentos é o imaginário sobre o local. Afinal, tanto as comunicações tradicionais sobre o município (sendo elas institucionais ou não), quanto os depoimentos dos turistas, bem como as representações virtuais analisadas e os aspectos identificados por os estudantes da amostragem, contextualizam Porto Seguro como o local de natureza exuberante e da festividade, propagando e legitimando o imaginário da Carta de Caminha.
As respostas do último quesito do questionário aplicado aos nativos podem vir a ratificar esse posicionamento. Pediu-se que fossem apontadas três características do município que deveriam representar o município na internet. Centros históricos, a natureza, incluindo as áreas de preservação da Mata Atlântica , os empreendimentos, as festividades e a culinária foram os aspectos mais citados. Contudo, outros fatores foram enunciados como importantes, entre eles, a descrição do perfil dos visitantes, os eventos, cursos de especialização, o comércio local, a oferta de emprego, a arte popular, o folclore do município bem como a historia do povo local, enfatizando a vida dos antigos morados. Também foi sugerida uma interconexão do município com toda a Costa do Descobrimento.
Com essa perspectiva de associação e interconexão social é que será edificada, no próximo tópico, uma abordagem sobre o modelo de cidade digital adequado para a representação do município de Porto Seguro no ciberespaço, na tentativa de contemplar a sua dinâmica. Entretanto, o enfoque principal da discussão que se segue é traçar um plano em que se possa cogitar uma prática de democracia junto às decisões referentes aos destinos do município, de modo a evidenciar não apenas os interesses dos segmentos com relação ao turismo, mas realmente de se propor um processo de inclusão digital, na qual possa-se oportunizar uma educação intercultural em que o multiculturalismo e os hibridismos culturais contribuam para alterações efetivas, reduzindo as diferenças sócio-econômicas e os conflitos étnicos locais. Desse modo, espera-se que a internet possa constituir-se, de fato, como um ‘vulcão da liberdade’, confirmando, assim, a metáfora do texto usado como epígrafe.